sábado, fevereiro 11

 
A eterna discussão sobre as bondades e superioridades rivais das várias civilizações encontrou novo fôlego com a crise actual das caricaturas de Maomé. (...) Se trata de um tema cheio de espinhos e, por vários motivos, todos eles mais ou menos óbvios, muito poucas vezes discutido segundo os mínimos saudáveis de imparcialidade. Mas acima de tudo o que há aqui é muita confusão. Superior em relação com quê? De qual ponto de vista? Moral? Religioso? Tecnológico? Artístico? Uma soma de tudo? Quem sabe a fórmula matemática desta soma? E as parcelas todas que nela participam?

Poderia ser que uma análise fria das doutrinas das principais religiões colocasse o Islão em uma posição pouco lisonjeira enquanto a pacifismo e tolerânica se trate, e o Cristianismo em outra melhor situada, o que não quer dizer, é claro, que fosse aquela, entre todas, em que estes aspectos tenham maior importância. Mas o importante aqui é perceber que estas diferenças, a existirem, nunca proibiram em diversos momentos da história, alguns deles bastante largos, que por exemplo, a comunidade islâmica não fosse na práctica muito mais pacifista e tolerante que a cristã europeia. O tema da superioridade moral das religiões é senão absurdo seguramente inútil e falso.

Se situamos o conceito de patrimônio de uma civilização como soma das suas descobertas, dos problemas que se propôs tentar resolver, e das soluções que propôs para estes mesmos problemas ao largo dos tempos. O conjunto de mentefactos, sociofactos e artefactos que uma civilização inventa e acumula baixo o nome de cultura (...). Então nos parecerá mais ou menos óbvio que a civilização ocidental acumularia aqui eventualmente mais patentes. Passo a passo, por se acaso. No campo dos artefactos a superioridade tecnológica do Ocidente é óbvia, o que não quer dizer nunca que seja ou tenha sido eterna, nem muito menos. No campo das estructuras sociais, dos modelos de organizações das sociedades, etc, a diferença é talvez menos óbvia, mas pelo menos poderemos ainda considerar-la como provável. Se passamos aos tais mentefactos, a arte, a filosofia, as ideologias, as idéias em geral, a superioridade torna-se outra vez óbvia, não necessariamente no sentido quente da qualidade, mas no sentido frio da quantidade e variedade. Segundo esta concepção, aquilo que chamamos civilização ocidental, comparada com as demais civilizações, seria eventualmente superior, significando isto o que signifique. E diríamos isto sem qualquer espécie de orgulho, pois o mérito, tal como a culpa, não se herda, apenas a fortuna e o infortúnio.

Agora passarmos disto que aqui se diz ao corolário de que a civilização ocidental é portanto melhor, no sentido de mais boa, mais bondosa, que as demais civilizações é todo um absurdo. A civilização ocidental inventou muitas coisas, boas e más. A democracia e o estado de direito laico moderno, mas também o nazismo e o comunismo soviético. A penicilina mas também a bomba atômica. Nem a bondade e tão pouco a maldade se encontram na cultura, mas no homem somente, e homens somos todos. Os instintos necessários e suficientes para criar a tragédia existe nos membros de todas as civilizações. E tal como nós ocidentais temos na nossa história inumeráveis campos de concentração, gulags, genocídios vários e todos horríveis, também nas civilizações orientais, africanas, etc, encontraremos outros holocaustos, seus, igualmente monstruosos. O problema da maldade intrínseca ao homem aparentemente não pode ser resolvido enquanto o homem for homem, e por mais inventos que as várias civilizações criem, e as cumbres que estas alcancem, o horror parece sempre voltar a acontecer, e não necessariamente com menor intensidade que antes...


Pois é ... "não necessariamente com menor intensidade que antes ..."

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